Amigos amigos, nazistas à parte
Por Railane Borges
Foi um dia daqueles que você nunca esquece. Segundo ano do ensino médio. Era dia de projeto na escola e ficamos com a cor azul. Na competição, nosso grupo traria a “Era Vargas” em trabalhos manuais com cartolinas e uma representação teatral. Eu e Warllem estávamos de frente na organização dos sketches cômicos enquanto o grupo que ocupava as primeiras carteiras da turma e tinha mais condições acadêmicas, se pôs a confeccionar o conteúdo expositivo e pedagógico.
Mais tarde, diante das arquibancadas lotadas da quadra eu representei uma idosa toda vestida de vermelho, com cabelos brancos de algodão e voz curta, cuja dificuldade de locomoção a fazia arrastar-se pelo palco improvisado enquanto vasculhava em sua memória os intermináveis atos do homem que por mais tempo esteve à frente do Brasil, com a peculiaridade de ter ocupado o cargo, tanto de forma direta, quanto indireta.
Confusa, ela tentava organizar sentido entre diferentes momentos do político mais controverso que tivemos, primeiro como um baluarte dos direitos dos trabalhadores e depois, como um golpista em uma reviravolta na qual Getúlio instituiu o ESTADO NOVO junto aos militares das forças armadas.
Mas este não é um texto sobre Getúlio Vargas. Não.
É só mais uma dessas coincidências que a gente não entende, mas talvez sejam as pegadinhas da vida. Tantas e tantas vezes na história vimos homens que se acham maiores que os preceitos de cidadania, que os valores do humanismo, que os projetos coletivos que engendramos e gestamos por anos na tentativa de construir uma sociedade que mirasse em bem-estar, em vida longa e próspera.
Na contramão do desejo de paz das pessoas comuns, vemos correndo agressivamente na direção da tomada de poder, homens afoitos por surrupiar a democracia e empurrar seus ideais em todos, sem o menor respeito pelo tempo empenhado em construir o Estado como se apresenta, com suas falhas sim, muitas, e instituições corruptíveis, mas passível de ajustes!
Os golpes ou tentativas de golpe entraram na roda cíclica da história e na mira dos movimentos radicais que cooptam participantes hoje através do medo e do sensacionalismo, com as mesmas bandeiras de sempre, de todos os golpes anteriores.
O mais engraçado é que esqueci em absoluto se saímos vitoriosos da escola naquele ano. Vinte anos depois e não posso confiar em qualquer palpite da minha mente. Podem ser floreios, sugestões inconscientes. Talvez tenhamos vencido, ou mesmo o grupo verde. Mas a lembrança seguinte depois de atuar, é de comemorar junto com a outra turma do segundo ano. Existia uma separação entre nós desde o início das aulas que com a culminância do projeto acabou se desfazendo.
De repente torcíamos pelas mesmas pessoas, estávamos juntos nas provas e pudemos finalmente estreitar os nossos laços. O primeiro a se juntar a nós depois dos aplausos foi o Ricardo, que era um menino carismático e cara dura capaz de fluir por todos os grupos e ambientes durante os intervalos, portanto, apesar de não frequentar as aulas na mesma turma que eu, já éramos amigos. Foi ele que, funcionando como uma ponte naquela tarde de trégua, aficcionado em encurtar distâncias, me apresentou a ‘Joana’. Eu amei tê-la conhecido.
Joana tinha um sorriso cativante, uns olhos que brilhavam de uma forma magnética e uma humildade no trato com as outras pessoas que ensejavam a mais verdadeira cortesia em retorno. Foram essas as coisas que me chamaram a atenção na primeira vez em que conversamos. E como conversamos.
Depois a escola acabou e o icq acabou, o msn acabou, e eu a perdi de vista por mais dez anos, para reencontrá-la através das redes sociais em 2015! De lá para cá, acompanhando-a virtualmente, mais dez anos se passaram. Foi pelo Instagram que pude assistir aos passos marcantes da jornada. Eu a vi namorar e declarar seu amor, depois casar, ir viver nos EUA, ter seus filhos, engajar em sua religião...
Como ela, muitos outros dos meus amigos também eram imigrantes por lá e foi impossível não pensar neles enquanto Donald Trump, um desses homens que não aceitam bem a democracia e a oposição de ideias, ainda antes da posse de seu segundo mandato, já os ameaçava com o dedo em riste, de deportação e de suspensão de uma série de direitos.
A última semana foi uma triste constatação de que vivemos essa amnésia coletiva, que não nos permite perceber o retorno da humanidade aos pontos de inflexão em que estaremos mais uma vez expostos aos piores riscos. Nossa sina é o ciclismo. Tudo gira e muda e acaba voltando ao mesmo ponto em algum momento. Talvez seja algum tipo de maldição. O caso é que aconteceu de novo. A nação com o maior poder bélico do mundo elegeu a beligerância em pessoa para o maior cargo de comando. Esta escolha não afeta somente as pessoas sob sua regência. Afeta a todos.
Em sua posse, estavam presentes como seus aliados os donos das maiores redes sociais, partes indissociáveis de um plano para obter o monopólio da informação, do compartilhamento e da propaganda a favor de sua ótica excludente e radical de sociedade. Em seu primeiro discurso oficial, Trump pregou pela segregação, por uma América do Norte apenas para americanos, hostilizou e criminalizou grupos inteiros, principalmente a comunidade LGBTQIA+ e os imigrantes.
Depois como um negacionista NATO, deixou o acordo pelo clima para trás, tornando impossível que o mundo bata a meta traçada em conjunto, para tentar frear mesmo que tardiamente a crise climática e saiu da OMS, cancelando os repasses à organização.
Não serão tempos fáceis para a dignidade, para a justiça social, para os direitos humanos ou para a necessidade urgente de impor limites à produção desenfreada que está devastando o mundo. As coisas vão apertar. E nós vamos precisar resistir, como der. E nos manter íntegros. Ao assistir aquele show de horrores, a sensação de impotência trouxe devagar um cansaço típico daquele que nos rouba a voz por algum tempo, sabe? Eu costumo sofrer desses hiatos.
São ressacas verbais depois desses dias em que as ondas te sacodem do rumo e embaralham as palavras antes de saírem pela boca. Só não foi pior que deitar os olhos naquele gesto horrífico do Elon Musk. Aquilo ali acabou imediatamente com o silêncio. E é por esse gesto que eu estou escrevendo tudo isso. Frente a este tipo de manifestação, é preciso que todos espantem a poeira de suas botas e luvas e estejam prontos a calçá-las.
A mera semelhança com um cumprimento nazista já deveria ser o suficiente para suscitar desculpas e constrangimento por parte de quem o fez, mas apesar de especialistas acadêmicos terem identificado o “Heil” e repudiado fortemente o movimento e de supremacistas brancos terem comemorado aquilo como final de copa do mundo, Elon, apoiador declarado do partido de extrema direita na Alemanha, resolveu apenas rir, manter a soberba e dizer que as críticas e analogias são apenas mais um jogo baixo de seus oponentes.
Quem não está estarrecido, foi certamente arrastado pela correnteza. Parece absurdo pensar que o algorítimo já tenha nos dividido em dois mundos. Mas é verdade. Se estávamos e nos percebíamos polarizados antes, agora podemos ter a grande certeza de que somos agentes participativos de um plano previamente traçado. Um plano mundial. E isto não é de forma alguma uma nova teoria da conspiração.
E por mais que eu acredite na busca de convergências, que acredite que haja sempre uma nova fórmula de convívio, de diálogo, em que caibam diferentes percepções e visões de mundo, eu não pude compreender quando, entre todas as outras pessoas, justamente Joana reagiu com uma risada a um vídeo publicado, em que Elon Musk e Hitler aparecem juntos e com a mesma cadência, fazem o gesto controverso de saudação nazista.
Era mesmo a Joana dando risada. Do que ria? Por alguns minutos eu fiquei em estado de choque, sem saber bem como responder. Ela poderia ter escrito uma mensagem dizendo: “Não acho que tenha sido isso, acho que a reação foi exagerada, que não fez aquilo de forma intencional.” Mas o deboche da risada, frente à algo que se de fato confirmado ainda mais pelas atitudes já muito questionáveis desse sujeito, é absolutamente desprovido de graça, não me deixaram escolha.
Concluí com tristeza que não tinha nada a ser dito. Não era nenhum mal-entendido. Eles estão entre nós. E não tem conversa ali. Não se pode conversar com supremacistas, fundamentalistas religiosos, com transfóbicos ou com racistas. É tempo de deixar de lado as concessões e o romance. É preciso endurecer quando há tantas vidas em risco por esses discursos e gestos. Temo que desta vez, uma década de distância não seja o suficiente.
Volto brevemente à lembrança daquele dia em que tive que decorar as falas sobre o golpe. Sobre engajar em uma guerra que não era nossa. O olhar amigável de Joana, a conversa interminável que tivemos depois. Tantas parecências. Desapareceram.
*Railane Borges é atriz e cineasta
Ótima reflexão.
Existem princípios e comportamentos que são inegociáveis.
Existe um ditado alemão, muito citado, que afirma: "Se há dez pessoas numa mesa, um nazista chega e se senta, e nenhuma pessoas se levanta, então existem onze nazistas numa mesa."
Medo dos dias que virão! Parabéns pela reflexão!
Hoje, pouco antes de ler esse texto, postei um trecho de uma música que cresci ouvindo e que diz; "Eu desisto, não existe essa manhã que eu perseguia, um lugar que me dê trégua ou me sorria e uma gente que não viva só pra si".
Por vezes invejo os amigos que, sem perder a virtude, se voltaram mais para suas vidas e famílias. Se afastaram das disputas por corações e mentes.
Faz tempo venho desfazendo laços, erguendo muros que me separam daqueles que se revelaram com o advento das redes e a banalização do mal, como bem definiu a magnífica Hannah, mas receio que em breve estarei com pouquíssimos e que a triste constatação é que estamos perdendo.
Belíssimo…
O futuro chegou e arrancou máscaras. Triste ver pessoas próximas mostrando sua face preconceituosa, segregacionista. Pior. Indivíduos que seguramente sofrerão perseguição por parte do fascismo crescente, sorrindo para ele.
Texto fluido e bem legal. Triste ver o carimbo de continuidade das trevas e da desesperança nesses personagens.