Batendo pino
Por Railane Borges
As crianças cresciam como o feno na primavera. Eu olhava para suas tiradas sagazes enquanto pairava entre embevecida com sua alegria e toques de inteligência bruta, e temerosa com a assunção horrorífica de que aquela poderia ser a última vez que as escutaria postas daquela forma com suas pronúncias de pequenos tateadores da linguagem.

Mesmo com uma rígida rotina mantida, a vida escorregava para fora do plano e as mudanças iam se estabelecendo e reescrevendo a agenda, reformando a matéria dos dias para além das nossas vontades enquanto eles adquiriam suas habilidades sociais.
Não adiantava fotografar cada passo, nem escrever cada memória. Não era o suficiente deitar um olhar doce e triste enquanto discutiam a quem pertencia uma carta pokémon específica, como só poderiam fazer os que acabaram de chegar e não tem pressa alguma. O tempo continuaria passando independente do que fizéssemos para tentar capturá-lo.
Era preciso aceitar. Foi assim que acordei um dia e me dei conta de que em três meses teria um filho maior de idade. Faz um ano e meio o do meio aprendeu a andar de bicicleta sem rodinha e com autonomia. Agora, aos seis, está fissurado em manobras radicais. Alguma criança mais velha que ele conheceu no Horto Municipal o ensinou a levantar o pneu da frente com o impulso certo e agora ele treina todos os dias para empinar cada vez mais alto. Eu já quase posso vê-lo nas bicicletadas e pedaladas por aí. Aconteceu de repente.
O irmão mais novo vem sempre a reboque, relatando com perfeição de detalhes tudo que se passou durante a jornada matinal na companhia de seu pai. Ele mesmo tinha aprendido a fazer “drifts”, freando e escorregando o pneu na terra. As crianças sempre estão com a mente fervilhando. Não importa o que esteja acontecendo no mundo, tem sempre espaço para sorrisos, sonhos e fantasia.
Esta semana, depois de quatro horas e meia de estrada, eu e meu marido chegamos em casa depois de desfrutar de uma viagem a dois muito especial, em que celebramos seis anos de casamento. Tudo corria maravilhosamente bem e eu achei que a paz era o único sentimento que iria se instalar naquele dia.
Mas não foi isso que aconteceu. As divagações da estrada e o romance morreram imediatamente assim que eu mirei a prateleira do quintal. Sobre ela, descansando inertes, dois pinos vazios reluziam com resquícios de pó branco em suas extremidades.
Como uma coisa daquelas poderia ter vindo parar na nossa casa, onde só estiveram um adolescente, uma idosa e duas crianças? Todo tipo de hipótese pairou sobre nós.
Incrédula e preocupada, repassei cada uma das possibilidades aventadas por minha mente.
A primeira pessoa com quem conversei foi o adolescente. O ar pesava.
“Isso é seu?”
“O que é isso?”
“Sério, se for seu fala logo, eu prefiro saber”
“Tá maluca, isso não é meu não. Nunca vi isso”
“É um recipiente para droga, estava em cima da nossa prateleira, então não é seu?”
“Nossa, não, você acha que eu compraria isso?”
“Ótimo, não compre!”
Desprotegida, senti que a casa não estava segura. Alguém teria entrado? Algum dos nossos amigos poderia ter esquecido isso por lá, mas isso seria tão inapropriado. Era preocupante.
Resolvemos arguir a filha mais velha. Nunca se sabe. Melhor perguntar que não.
“NA PRATELEIRA?” – sua voz não pôde esconder a surpresa. “Meu Deus, não”
Ninguém sabia nada a respeito daquilo. À noite não consegui dormir.
No dia seguinte, Sandro levantou com os meninos e desceu. Antes que ele seguisse com o mistério dos pinos, escutei lá de cima o Ravi indagando o pai:
- “Ô pai, cadê aqueles meus potinhos hein? Que eu coloquei aqui na prateleira? Peguei para colocar água e pedrinha, para fazer uma poção”
“Potinhos??? Você que trouxe aquilo? De onde?
“Da rua, ué”
Eu não conseguia decidir se ria ou chorava.
A ingenuidade das crianças era mesmo um tesouro, mas que mundo cão. Que mundo cão. E então eu me lembrei que um senhor de sessenta e cinco anos pescou um Robalo em São Paulo com dois pinos de drogas dentro do corpo e da pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina que identificou uma das maiores concentrações de cocaína do mundo em uma lagoa de Florianópolis. O que aconteceu com a gente não foi uma coincidência.
É tudo só sintoma do quanto estamos fugindo da realidade.
*Railane Borges é atriz e cineasta
Criar rotas de fugas para escape da realidade é estratégia humana. Sobrevivência. Artes, filosofias e ciências, de modo geral, abordam isso. Fazer uma boa crônica, sobre essa coisa acontecida, é de Railane. Boa!
Triste demais! Ano passado me vi assombrada por isso tbm, por ter aparecido na calçada, em frente ao meu portão! Descobri que usam próximo de uma árvore bonita aqui na rua! Quando eu vejo, jogo longe no valão!
Tempos tristes e difíceis vivemos agora! Ou fogem da realidade com drogas, bebidas ou com horas e horas entregues nas redes sociais…
Parabéns novamente pelo texto!