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Carta a uma vítima de violência do Estado

Por Railane Borges


Foi um lindo discurso. Você teria ficado orgulhoso. Todos eles falando de seus compromissos particulares com a justiça social, com a democracia como um todo.

Tão bem vestidos, os ministros do Supremo Tribunal Federal.

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Eles reconheceram que nos territórios periféricos, onde vivem as pessoas que constroem todos os outros territórios, pondo-os de pé e a funcionar; não se tem a mesma privacidade e o mesmo direito à vida.


Falaram dessas realidades como se as conhecessem de fato.


É engraçado pensar que a decisão sobre pessoas de carne, osso e escassez de recursos, (sobre)viventes nas comunidades, vem de seres quase supremos, que ‘integram’ o judiciário - não como pessoas, mas como parte de um dos poderes estabelecidos do Estado soberano de direito.


Esses ‘meta-humanos’ de um mundo supostamente sem heróis e vilãos, em suas togas imponentes, dizem entender também que as raízes dessa realidade estão no passado sanguinário, que construímos como um país escravocrata.


(O último a abolir a escravidão, como precisamos nos lembrar com a dúvida cruel sempre pairando sobre os pensamentos: “abolimos mesmo?”)


Em dado momento, um deles até sugeriu de forma muito poética que o Estado “invadisse as comunidades com educação, cultura, lazer, esporte e saneamento.”


Naquele momento eu assistia ao julgamento da ADPF das Favelas através de um link ao vivo e pensava no dia em que conheci sua história pelo noticiário.

Eu quase comemorei a vitória do mérito.


Por você e pelos outros. Como mãe, a perda de um filho é algo que me abala demais. Fiquei pensando nos rostos de vocês.


Aquelas falas bonitas, delicadas. Deu esperança, sabe? Imaginei que de posse de tanto saber, que os ministros afirmavam ter, alguns pontos seriam dados.


Finalmente sua mãe poderia alcançar um pouquinho de paz. Já pensou?


Iam parar de entrar sem objetivo na favela dando tiro para todo lado, como se estivessem em uma terra estranha lotada de exércitos inimigos.


Em um cenário justo, se fossem entrar, seria como em todos os outros lugares.

Bater em portas específicas, em endereços que constassem em suas ordens de missão, para cumprir com mandados após a devida investigação. Junto a eles, uma ambulância para nunca mais nenhuma possível vítima ser impedida de ser socorrida, como escutamos em tantas reclamações.


Ninguém mais precisaria ver o que a sua mãe viu no dia em que conheceu a dor de Maria. Pelo que seu filho teria sido sacrificado? No dia do seu próprio aniversário.

Enquanto eu me perdia em devaneios, esperançosa de que a ADPF fosse aprovada integralmente, escutei as primeiras falas um pouco difíceis de digerir.

Engraçado como antes da martelada vem sempre um afago. Eu nem percebi o jogo virar.


“Nosso número de homicídios anda altíssimo”, mencionaram.


Isto é verdade. Mas não o que veio depois. Estamos errando em punir os crimes contra a vida. Estamos falhando com as vítimas, e impulsionando a sensação de impunidade.

Tudo isso enquanto alimentamos uma indústria da morte.


Uma vez escutei de um policial federal amigo do meu marido, que, no Rio de Janeiro, tinham testes e mais testes de diversos armamentos. Como um laboratório insano de guerra urbana.


E isso foi o que eles usaram como desculpa para decidir pela manutenção de diversos pontos das operações ineficientes, que culminam com a violência praticada de forma sistêmica contra famílias periféricas desde 1976.


Semana passada, naquela feira de armamentos e guerra, que, não por coincidência, eles fazem sempre aqui na Zona Oeste, apresentaram um drone da Taurus que opera fuzis de vários tipos.


Um show de horrores muito lucrativo. Espero que nada assim jamais volte a machucar pessoas. Não basta o Afeganistão e este mesmo show de horrores. Confesso que temo.

Junto a isso tudo, o STF fez um pedido discreto para que a Polícia Federal investigue as organizações criminosas que têm dominado com violência vários territórios no estado. Nas milícias, muitos agentes públicos e leis próprias. E encerrou a sessão.

Assim, desse jeito.


Os helicópteros continuam a ser plataforma de tiro, vingança e guerra contra qualquer um.

“Desde que seja proporcional”, eles dizem.


Decerto não sabem o que significa esta decisão.


Não se levou em consideração quem está matando e quem está morrendo, apesar do ministro Fux ter deixado claro que policiais em si morrem mais de suicídio que de morte matada.

(Será que uma guerra inventada deixa marcas como uma guerra verdadeira? Será que os policiais estão adoecidos pela lógica violenta imposta a eles? E pelo abandono quando respondem sozinhos por terem obedecido a gestões criminosas? Por que será que estão desenvolvendo TEPT, depressão, inclinados à auto aniquilação?)


Quando Moraes jogou a bola para seus correligionários, mencionou que supostamente a Polícia prendia para a Justiça soltar.


Lá vem de novo a grande falácia que empurra a culpa contra o judiciário, enquanto discursam pelo endurecimento na repressão, fugindo da discussão sobre os métodos investigativos numa construção retórica importante apenas para seu próprio plano infalível de poder. A quem interessa que ele diga isto? Por que?


Não acho que seja por falta de ciência. O absurdo na fala é tão profundo que comentar levaria mais energia do que disponho no momento tenso em que escrevo este texto.

Basta afirmar que temos o terceiro maior sistema prisional do mundo.


As operações continuarão. As pessoas continuarão vulneráveis em meio a uma guerra construída para o estereótipo do inimigo.


Eu sinto muito que esse descontrole social, esse teatro de segurança pública tenha levado você também.


Além da obrigatoriedade das forças usarem câmeras corporais, nada ou muito pouco mudou. (E esperamos que isso seja motivo de justiça em algumas ocasiões!)

E assim será.


No mais, essa semana em Acari, onde vive a Buba, o caveirão voltou a circular. Parou em frente à escola e à UPA, e por lá permaneceu por horas. Trocas de tiros infrutíferas e letais estiveram em curso. Nenhuma cadeia de crime foi atacada, nenhuma mudança foi alcançada. Perdem os moradores, as crianças, os policiais, os jovens, a Justiça, o Estado.

Mas as faltas serão abonadas, dizem as burocracias.


Não demorou até que a SEOP também chegasse para avisar que iriam demolir algumas lojas que estão por ali há mais de dez anos.


Em mais uma criminalização da pobreza, estiveram presentes para tirar o ganha pão de alguns trabalhadores.


Parece que não vão invadir ainda com investimentos em cultura, educação, saúde e lazer.

Apenas o enfrentamento continuará.


Malditos sejam os que exploram a pobreza e a fragilidade desta terra. Mercadores do caos, da miséria, caricaturas do fracasso do pacto social.


A falta que faz você para sua família, tenho certeza, jamais será preenchida, abonada, nada, nada.


Por aqui seguirei na luta. Prometo te contar as novidades desse palco de horrores. Até que todo o véu caia.


Com carinho,


De alguém que ficou.


*Railane Borges é atriz e cineasta

2 Comments


mabgomes2003
há um dia

Essa guerra nós já perdemos. A descrença no poder público, a falta de propostas e fazeres deste "estado"organizado que só pensa e legisla a favor de si mesmo, tudo isto nos adoece enquanto cidadãos.

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Concordo inteiramente com todos os argumentos. A criminalização da pobreza e o desprezo das elites tem história. A escravidão deixou marcas que ainda estão gravadas em nossos tempos. Abandono, desprezo... Como você bem mencionou, as autoridades em seus gabinetes luxuosos pouco ou nada conhecem dessa realidade. Em minhas aulas, gosto sempre de comentar o caso do menino Bernardino, vítima de uma violência abjeta no final da Primeira República. Algo tão brutal, que motivou na época a primeira legislação relacionada aos "menores" (https://site.mppr.mp.br/crianca/Pagina/ECA-Linha-do-tempo-sobre-os-direitos-de-criancas-e-adolescentes#:~:text=O%20engraxate%20Bernadino%2C%20de%2012,narrou%20o%20ocorrido%20para%20jornalistas).

Como você mencionou, não existe dor maior do que a perda de um filho/a.

Edited
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