Disrupturas
Por Railane Borges
O céu já hava recolhido suas armas quando ela pôs os pés frios no chão. Era o décimo quinto dia de pé frio. Já não se podia prever as estações como antes. Ou as sortes.
Teve que se arrastar até a cozinha enquanto esfregava o lóbulo da orelha pois sentia que como nos dias anteriores sua força parecia avariada por um defeito de circuito. Não se sentia vital como outrora; mas cansada; carregando um ar pesado consigo, um ar espesso que escondia das pessoas na bolsa que também arrastava consigo por onde quer que fosse. Àquela altura - enquanto cruzava com as portas - já não conseguia se recordar da necessidade que a levou a comprar uma casa tão grande quando seu corpo facilmente se moldaria a um copo.
Enquanto o acaso acontecia vivo para todos lá fora, a rotina escorria morta pelo sofá da sala de estar. O que também escorria morto pelo chão da cozinha era o café da madrugada, que pretendia esquentar até que fôra surpreendida pela incrível habilidade da Fifi, a felina maldita, de atravessar os basculantes em represália por seu exílio noturno.
“-Fifiiiiiiiiiii!” – Ela urrou, nervosa. Seus urros ecoavam no vazio. Nem Fifi estava mais ali.
Todos pareciam ter chegado e partido antes que a porta se trancasse e as luzes findassem na calada da noite. Seus passos arrastados arranhavam o chão de taco criando caminhos previsíveis. Da sala ao quarto, do quarto ao banheiro, e deste à cozinha. O negrume da noite se derramava por cima do ânimo e toda a parecia materializar com alarde a agonia de Malu. Ela não podia tampouco se reconhecer em seu nome.
-“Ma-lu” – repetiu, simulando a sonoridade das letras, abrindo os lábios por completo e fechando-os em seguida. Até que tentou vez ou outra espantar a fumaça da água fervendo para cima, mas ela se adensava sob sua cabeça numa queimação constante de idéias fervorosas. A mente não se alinhava ao corpo lento.
O som libertador da janela para o mundo inventada por Gran Bell tirou Malu do fogão às pressas. Era uma chamada internacional.
- “Senhora Maria Luíza?” – Um sotaque estranho.
Ela suspirou fundo. Ali abria mão de seus últimos reservatórios de ar.
-“Não, é a filha dela, ela não está. Ligue mais tarde, por favor.” E não esperou a resposta para acertar o botão de desligar.
A ansiedade corroía sua pele como um exército de pequeninos tatus que cavavam sulcos, feito túneis subterrâneos de preocupação sob a pele do seu rosto. Pequenos tatus invisíveis, mas vigorosos. Em dois anos haviam feito trechos e mais trechos de suas vias escavatórias que a princípio eram rasas, tímidas, quase imperceptíveis. Agora algumas iam do nariz ao queixo, enviezadas ao contornar os lábios. Eram construtores eficientes.
Malu pensava em seu rosto como a transamazonica ou a sulamericana que jamais percorrera. Claro que voltou ao médico que a contou sobre esses pequenos malditos ignitores do envelhecimento. Desde que o lato sensu se tornou o medidor oficial para recrutamento de profissionais competentes, seus trabalhos acadêmicos eram expostos nos consultórios deliberadamente, então sabia, por suposto que de frente a ela estava o futuro da dermatologia. Mas seu problema não era dermatológico. Naquela semana veria dois anos se completarem sem que tivesse qualquer notícia de João. Ele, como todos os outros, bateu a porta detrás de si e nunca mais voltou. Não lembrava de ter visto sua mãe passar por isso. A famigerada frase: “Quando você for mãe finalmente entenderá” não serviu a este caso.
Os especialistas não tinham uma formula mágica para a tristeza de ver um filho romper com sua mãe e partir rumo ao fundo do mundo.
Como um bom senhor da classe médica preparado a lidar com peles, ele contou em tom grave e de denúncia que desde que homens como ele e seu seleto grupo anularam os efeitos da gravidade, há um movimento internacional focado na distribuição destes ‘micro-tatus’ utilizando canhões de dispersão em países desenvolvidos, como medida para frear o envelhecimento dessas nossas idosas tão saudavelmente transgênicas. Uma tentativa golpista de comprovar o fracasso de nossa maravilhosa suspensão do tempo regulamentar em detrimento da eternidade - um milagre que a transmutação genética nos vem possibilitando.
“São os neo-comunazi, um grupo dominante poderosíssimo que ganha adeptos à largas cavalgadas.”
⁃ “Como?”
Malu pensava no rosto sério de João, sentado à mesa. No prato vazio em que depositou o último olhar antes de partir. Uma refeição em que servira angústia e ressentimento, nenhum alimento que se pudesse nutrir um filho.
⁃ “Eu o amo, mamãe. E vamos ficar juntos” Ela, apática e surda, não deu uma palavra sequer.
Malu saiu do consultório pensando que ao menos não estava envelhecendo de velha. Estava envelhecendo por um plano comunista maligno pró-envelhecimento! Era um alívio afinal que a sociedade tivesse se livrado da aparência do fim. Era isso. E do que mais tinham se livrado não gostava de pensar pois então teria que entender todo o resto a que se recusava.
Segundos se passaram. O suficiente para o senso crítico de Malu oscilar outra vez. Não estava acostumada a ter que se aprofundar nas dúvidas que tinha. Aclamavam-se os tempos do “tanto faz!” “Assim seja!”
Lá fora voltava a chuviscar, as folhas estavam alaranjadas - quase marrons -, prontas a se juntar ao solo na transformação da terra eterna e fria na qual Malu pisava para mais um dia. Era dia de mais dia. E não podia fazer nada a esse respeito. Não podia?
Sua memória desenhava-se como um mapa em seu rosto e não havia jeito de se manter indiferente àquilo. A falta de João a marcava à risco de morte.
Já em casa Malu apanha um papel sob a estante. Rabisca algo nele. Ela sai e no relance o rabisco desleixado ainda termina sua revoada para pousar sob a mesa revelando as palavras tremidas nele escritas:
“Há uma verdade inexorável sobre as mesas: elas viram.”
Não podemos ver Malu sair pela porta, pois já vai apressada, mas sentimos na carne o estrondo da madeira se chocando gravemente contra as dobradiças de aço. É o som pós moderno do que outrora fora grito de luta da espécie humana. Os gritos estavam proibidos já há algumas gerações, mas acontece que a natureza não. À natureza? Não.
Malu irá ao encontro de João e nada mais importa. Se chegará antes que o tempo a faça tornar-se uma triste história completa e sem final, já não importa. Para o inferno com os tatus. Quer envelhecer e quer fazê-lo do jeito certo. Cartas na mesa e coração na mão. Ele ainda a receberia?
Railane Borges é atriz e cineasta.
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