Esconjurando o 13 de dezembro - Artigo de Waldeck Carneiro
Waldeck Carneiro*
No último dia treze de dezembro, data terrivelmente marcada no Brasil pelo Ato Institucional nº 5, instrumento autoritário que passou a viger em 1968, dando sustentação a vários crimes e arbitrariedades perpetrados durante o pior ciclo da ditadura civil-militar brasileira, foi lançado o Fórum Nacional de Gestão Democrática da Educação (FORGEDE) “Professor Jorge Najjar”, com participantes de diversos estados brasileiros e com a “benção acadêmica” do professor Licínio Lima, Catedrático da Universidade do Minho (Portugal), um dos maiores especialistas no tema. Na ocasião, o eminente intelectual português pronunciou a conferência magna intitulada: “Gestão democrática da educação: questões teóricas e políticas em contextos gestionários pós-democráticos”.
Como se sabe, a gestão democrática do “ensino público” é um princípio insculpido no inciso VI do artigo 206 da Constituição Federal, corroborado no inciso VIII do artigo 3º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) nº 9.394/1996 e reiterado no Plano Nacional de Educação (PNE) aprovado pela Lei nº 13.005/2014. Neste diploma legal, de caráter estratégico para a educação brasileira, a gestão democrática da “educação pública” consta, no inciso VI do artigo 2º, como uma das diretrizes do PNE; figura, ainda, como um dos artigos da lei (artigo 9º) e, por fim, está consignado como uma das vinte metas (meta 19) do referido Plano.
O FORGEDE surge no contexto de graves desafios à democracia em escala global. No Brasil, não é diferente. O golpe que depôs a presidenta constitucional do Brasil, Dilma Rousseff, em 2016; o (des)governo neofascista de Jair Bolsonaro; a intentona golpista de janeiro de 2023; o episódio recente do homem-bomba que acionou explosivos na Praça dos Três Poderes, em Brasília (e na manhã do mesmo dia das explosões esteve na Câmara dos Deputados); e o plano golpista que pretendia impedir a posse da chapa vitoriosa na eleição presidencial de 2022, cogitando inclusive assassinar o então presidente eleito (Luiz Inácio Lula da Silva), o vice-presidente eleito (Geraldo Alckmin) e o ministro do STF (Alexandre de Moraes), são evidências inequívocas dos riscos que pairam sobre a historicamente frágil democracia brasileira e suas instituições.
Sobre os objetivos do FORGEDE, recém-criada entidade nacional do campo educacional brasileiro, merecem ser aqui listados. Em primeiro lugar, pautar os temas da democracia, do direito à educação e da gestão democrática da educação, no âmbito da sociedade brasileira, em especial em escolas de educação básica e em instituições que formam profissionais para a educação básica. Em segundo lugar, participar de debates públicos e de lutas sociais referentes à defesa do Estado Democrático de Direito e aos processos de formulação, implementação, monitoramento e avaliação de políticas públicas de garantia do direito à educação e de gestão democrática da educação. Em terceiro lugar, dialogar e participar de articulações com entidades nacionais, notadamente com aquelas que atuam no campo da educação, com o fito de defender e aprimorar continuamente a democracia, o direito à educação e a gestão democrática da educação. Em quarto lugar, contribuir para o desenvolvimento de pesquisas e de atividades de extensão, em especial por meio de ações de formação continuada, preferencialmente em parceria com instituições de ensino superior e de pesquisa, sobre os temas da democracia, do direito à educação e da gestão democrática da educação. Em quinto lugar, tomar parte, sempre que convidado, ou solicitar participação em audiências públicas e reuniões oficiais, nas diferentes esferas do poder público, quando a pauta se referir, direta ou indiretamente, à questão da democracia, do direito à educação ou da gestão democrática da educação.
Na primeira coordenação colegiada da nova entidade nacional, constituída em caráter provisório, terei a honrosa e desafiadora missão de exercer a coordenação-geral, ao lado de grandes nomes da educação brasileira, como Malvina Tuttman (coordenadora do Fórum Estadual de Educação do RJ, ex-reitora da UNIRIO e ex-presidenta do INEP), Teresa Leitão (senadora da República), Erasto Mendonça (ex-membro do Conselho Nacional de Educação e atual coordenador de Educação em Direitos Humanos do MEC), Mônica Ribeiro da Silva (coordenadora do Observatório do Ensino Médio da UFPR), Bethânia Bittencourt (professora-pesquisadora da UFLA na área de gestão democrática da educação) e Ana Rosa Brito (coordenadora do Fórum Estadual de Educação do Pará).
Além da emblemática e muito combatida (pelo campo conservador) pauta da eleição direta de diretores(as) nas escolas públicas, a gestão democrática da educação abrange diversas questões, como a vitalidade dos processos participativos nas diferentes situações de tomada de decisão no contexto escolar, em especial no tocante à formulação e à aprovação do projeto político-pedagógico da escola. Ademais, também é um indicador potente da gestão democrática da educação o funcionamento regular e pujante das estruturas colegiadas, intraescolares e extraescolares, tais como: a) os conselhos escolares; b) os fóruns de educação, entidades oficiais bipartites (com representação do poder público e da sociedade civil) existentes nas diferentes instâncias administrativas da Federação brasileira; c) os colegiados de Estado, a saber, conselhos de Educação, do FUNDEB e de Alimentação Escolar. A transparência e a fluidez na circulação de informações no seio da comunidade escolar, condição indispensável para que seus integrantes estejam a par do que acontece na escola e das formas de participação na vida escolar, também são fatores de democratização da gestão da escola. Além disso, a existência de instâncias representativas dos diferentes segmentos que compõem a comunidade escolar, tais como grêmios e associações de pais e professores, e o combate a violências, perseguições e discriminações no contexto escolar também são aspectos importantes da experiência democrática na escola.
Convém lembrar que a escola não é um ambiente meramente instrucional, ou seja, seu papel não se resume ao trabalho pedagógico com os conteúdos escolares distribuídos por diferentes áreas do conhecimento, de acordo com a organização curricular, posto que também cabe ao processo de escolarização atuar na educação dos estudantes, transmitindo-lhes valores altruístas, humanistas, republicanos e civilizatórios, entre eles, sem dúvida, o valor da democracia ou, como queria Carlos Nelson Coutinho, a “democracia como valor”.
Por fim, cabe destacar que a gestão democrática não deve ser um princípio exclusivo das escolas públicas. Nas escolas particulares, a experiência democrática também precisa vigorar, ainda que não se possa, no contexto das instituições particulares de ensino, disciplinar a eleição direta de seus dirigentes, seja por controvérsias doutrinárias, seja em razão da correlação de forças no campo da educação, setor em que os interesses do capital também têm sido prevalentes. No entanto, como a eleição de diretores(as) não esgota a vivência democrática na escola, o diálogo, a participação, a transparência e a colegialidade, entre outros princípios, podem perfeitamente compor, como elementos estruturantes, o ambiente das escolas públicas e particulares.
Afinal, a educação democrática na escola, qualquer que ela seja, não se desenvolve apenas pelas atividades pedagógicas formais, mas também pelo exemplo que emana da convivência livre de práticas arbitrárias, preconceituosas e violentas.
* Waldeck Carneiro é professor da UFF e coordenador-Geral do Fórum Nacional de Gestão Democrática da Educação (FORGEDE).
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