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Hoje eu quero voltar sozinha e chegar em casa

Por Railane Borges


Era um dia bem comum de rotina familiar. A cozinha estava a todo vapor com o pai dos meninos à beira do fogão criando mais uma surpresa gastronômica cheia de sabor, como as que já vinha aprimorando há alguns anos. Estávamos todos com fome e alegres, os meninos de bicicleta pela casa bradavam mil perguntas e riam de si mesmos e de todo o resto. Eu flanava entre os ambientes da casa organizando a logística da escola, mochilas, boletos a serem pagos, consultas médicas, seus respectivos agendamentos e deveres de casa. Enquanto procurava um número na internet, uma matéria em destaque no portal de notícias tomou para si a minha atenção.

Freepik
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Eu li e reli com muita angústia a história da Vitória, de 17 anos. Ela tinha desaparecido na noite anterior, depois de sair do restaurante onde trabalhava, às 23h. Vinda de uma família extremamente humilde, sabia que correr atrás do seu próprio dinheiro era o único caminho para realizar seus sonhos.


Estava calor mas não pude segurar um arrepio que subiu pela minha espinha. O sentimento, correlato a todas as mulheres com quem convivi, era tão familiar quanto aterrorizante. Faltavam poucos dias para o Dia Internacional da Mulher. O som da casa desapareceu. O dia, recém raiado, tornou-se frio e silencioso, perdeu o contraste e a graça. As últimas notícias que se tinha da menina eram mensagens enviadas a uma amiga em que ela sentia que algo de ruim estava para acontecer. Nos áudios, com a voz trêmula e a ponto de chorar, sentia-se perseguida por cada homem que cruzava seu caminho naquela noite fria, quase madrugada.


Minha agonia foi aumentando à medida que as horas se passavam sem que novas atualizações chegassem. Eu e uma multidão assistimos ao desenrolar das buscas pela menina, aguardando seu retorno para casa. Victoria nunca fazia esse trajeto sozinha, pois sua família sabia que era um trecho perigoso. Mas justamente no dia em que desapareceu, o carro do seu pai quebrou e ele não pôde buscá-la no ponto. Conforme a polícia ia aprofundando a investigação e refazendo seus passos, fomos descobrindo que ela tentou se proteger do trajeto pedindo carona a duas pessoas em que confiava, mas os dois rejeitaram o pedido.


Uma semana depois que ela sumiu, nos deparamos com a cruel realidade feminicida: Vitória nunca mais chegará em casa. Depois de todas as perguntas sem resposta terem sido feitas, seu corpo foi encontrado a menos de 5 quilômetros de onde morava. Escrevo essas palavras com o coração em chamas, com um engodo grosso a entupir a garganta. Ela foi encontrada despida, com os cabelos raspados, marcas de tortura e facadas no rosto e no tórax. Seu cadáver indicava um absoluto desprezo pela sua condição de bela jovem mulher. Seus familiares precisaram reconhecê-la por um piercing e uma tatuagem.


Como um rolo, aqueles dias se desenrolaram. Não havia mais início, meio e fim. Todos eram o mesmo, todos começavam com Vitória caminhando para aquele ponto de ônibus mal iluminado. E todos terminavam com a descoberta da profanação de sua natureza.


Seu rosto se tornou parte do dia a dia das famílias brasileiras e a apatia se instalou em mim. Teríamos que nos contentar em digerir aquele caso estarrecedor, em seguir com nossas vidas, e esperar que a justiça fosse feita. O apelo midiático em torno do caso foi tão grande que causou desdobramentos impensáveis. Cada passo dado pela Polícia virava manchete, mesmo que não fosse desembocar nos culpados, mesmo que a investigação devesse correr em sigilo.


Na manhã do dia 7 de março, eu estava na sala quando meu filho mais velho se dirigiu a mim com um livro em mãos. Era uma devolução de um clássico de Albert Camus que eu o tinha emprestado despretensiosamente.


“Uau!” – exclamei.


Um adolescente nos tempos atuais entregar um clássico lido e sublinhado, apesar de seu tamanho humilde, com anotações e páginas marcadas tinha um gosto nostálgico celebrável. Eu ainda folheava o livro e escutava suas considerações a respeito da história quando o absurdo novamente roubou a cena. Uma jornalista extremamente famosa falava ao vivo com o pai de Vitória quando, de repente, achou de bom tom anunciar para o homem visivelmente enlutado, os detalhes do crime cometido contra sua filha e os possíveis autores, citando motivação e nomes. Ao fim, emendou:


- “O senhor sabia disso?”


Atônita, deixei o queixo cair.


Não havia reação possível para o sensacionalismo escancarado explorado por aquela gente. Assim como eu não reagi, também congelado diante da tela ficou o Sr. Carlos. A culpa de não tê-la buscado naquele dia materializava-se por toda a face. O imbróglio iniciado ali virou uma discussão nacional sobre os limites das reportagens, os tempos de lacração e a falta de ética do novo jornalismo, desesperado por aglutinar o público.


Eu pensava que não podia ficar pior do que já estava, mas podia. Ficção e realidade se misturaram como se a vida e não a arte usasse uma ferramenta de metalinguagem. No dia seguinte, o pai de Vitória apareceu arrolado ao caso, sob investigação. Em tese, sua reação controlada e sem emoção, sua apatia frente ao exposto e o ocorrido, seu carro quebrado na data exata em que a filha tinha sumido, tinham feito o homem sair do posto de vítima direto para o de suspeito.


Suspeitei eu estar vivendo um pesadelo. ‘O estrangeiro’ teria aparatado em vida. Eu confundia narrativa e mundo, os limites entre os dois esmaeciam e trombavam, aquilo devia ser parte da minha fantasia, do embaralhamento das minhas emoções. Um sintoma de estafa, estresse, um gatilho talvez?


Não.


Mais um dia se passou até que se desfizesse a confusão. Novamente, era apenas a mídia, se aproveitando da explosão em torno do caso para chamar mais atenção e mobilizar mais gente. O pai de Vitória, destruído por dentro, destruído publicamente, tentava permanecer de pé;


Finalmente chegou o Dia das Mulheres. Famoso Oito de Março. Os gifs de rosas começaram a brotar para todos os lados como de costume, junto com os “parabéns” que ninguém entende bem por quê.


O Brasil finalmente deixou Vitória descansar, deixou Carlos chorar seu luto, enquanto mudou o foco para a diferença de pagamento a homens e mulheres ocupando os mesmos cargos.


Em mim permaneceu o vazio. O luto, a dor. A certeza da distância entre um ponto e uma casa. Um mundo a se percorrer.


Continuo pensando no aumento constante da violência contra mulheres mesmo com tanta gente trabalhando em discursos para a conscientização. Continuo pensando na vulnerabilidade dos jovens.


Em sua última postagem, às 23h23, Vitória fotografou a rua onde estava e escreveu a seguinte frase: “Hora de descansar que amanhã tem mais”. Ali, não compartilhou apenas com seus amigos o fim de um dia de labuta. Deu também a um assassino tudo que ele precisava para chegar até ela. Uma menina, uma rede social virtual, a ingenuidade, a vida perdida...


A matéria real que nenhuma flor alcança, que nenhum “parabéns” devolve.


*Railane Borges é atriz e cineasta

5 comentarios


Continuidade da banalização da. violência e da morte. Desumanização sem fim.

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A analogia com " O estrangeiro" foi perfeita. Parabéns.

Além da tragédia terrível do crime, o constrangimento imposto ao pai. Cada vez mais os limites éticos deixados de lado.

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Bruno Plastina
Bruno Plastina
há 16 horas

Mais um belo texto! Conversava sobre um tema semelhante com uma amiga ontem! Ela com uma filha de 22 anos e eu com a minha ainda uma criança de 7 anos… Como as mulheres sofrem as mais absurdas atrocidades, sejam elas físicas ou emocionais! Tempos difíceis! Criar uma filha preparada para esse mundo é cada dia mais utópico. Pois não há preparação suficiente para uma sociedade cada dia mais doente!

Parabéns por mais um belo texto Rai!

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ricalia
há 17 horas

O que temos pra comemorar??? Tristeza? Impotência? Gritos abafados???

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mabgomes2003
há 17 horas

Tristeza define.

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