O 'Lebensraum' trumpista, blefe ou ameaça real?
Por Wevergton Brito Lima*
Em uma coletiva de imprensa em seu resort na Flórida, nesta terça-feira (7), o presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, se recusou a descartar o uso de ações militares ou econômicas para buscar a aquisição do Canal do Panamá e da Groenlândia (que pertence ao Reino da Dinamarca).
Segundo a agência Reuters, Trump, ao ser questionado se poderia garantir ao mundo que não usaria coerção militar ou econômica para alcançar esses objetivos, declarou: “Não, não posso garantir isso em relação a nenhum dos dois. Mas posso dizer o seguinte: precisamos deles para a segurança econômica.”
Na mesma coletiva, o presidente eleito anunciou a intenção de incorporar o Canadá aos EUA e mudar o nome do Golfo do México para Golfo da América.
Em outros tempos, tais declarações provocariam um terremoto geopolítico. Ainda que a ameaça constante aos povos e nações seja da essência do imperialismo, é raríssimo o líder de uma superpotência menosprezar com tanta desfaçatez e cinismo a soberania nacional de três países aliados (Panamá, Dinamarca e Canadá).
No entanto, a fala de Trump é mitigada pela sensação de que tudo não passa de uma estratégia de negociação, que tem no blefe uma tática fundamental.
De fato, levar à prática tais projetos teria um custo político e diplomático tão grande que poderia ser contraproducente.
Porém, se tudo não passa de uma manobra, devemos combinar que ela não tem nada de genial ou de inovadora. É o velho método do “bode na sala”, que os EUA (mas não só) sempre usaram nos bastidores e agora aparece revestido com a indumentária trumpista: agressiva e sem rebuços.
Para os que não sabem o que é a tática do “bode na sala”, é aquela situação em que você luta ferrenhamente, como se disso dependesse sua sobrevivência, para colocar um bode na sala alheia, levando essa luta a um nível estressante, para no final, depois de tensas negociações, em nome do “entendimento mútuo”, renunciar ao bode na sala em troca de outras concessões. Na verdade, você nunca quis o bode na sala, você queria desde o início as concessões que conquistou e que seriam negadas liminarmente se não fosse a ameaça do “bode na sala”.
O problema de uma tática dessas é que existe um limite para o uso do blefe. Nada mais desmoralizante em uma mesa de jogo do que um blefador desmascarado. Pois o blefe só é válido se usado com parcimônia, sendo necessário, de vez em quando, mostrar as forças reais de suas cartas.
De qualquer modo, descartar as ameaças de Donald Trump como meros blefes irreais não é um bom caminho. A história ensinou que é desaconselhável subestimar o imperialismo e sua face mais nítida, o fascismo.
Até porque esta é, em tese, a última chance de Trump para implementar seu projeto MAGA (Fazer a América Grande Novamente) e diferente do que aconteceu no primeiro mandato, agora ele tem a maioria do parlamento, da Suprema Corte e um partido republicano bem mais coeso ideologicamente e unido em torno de sua liderança.
Neste ponto, é preciso prestar atenção no que é a ideologia do MAGA e quais são seus pilares, para então podermos sopesar o que existe de real nas ameaças.
A coletiva de Trump, e logo depois a exibição de um mapa nas redes sociais do presidente eleito onde o Canadá já aparece incorporado aos EUA (uma ofensa gravíssima em termos diplomáticos) indica que entre os pilares da coesão ideológica trumpista parece estar a noção de Lebensraum (espaço vital) termo cunhado pelo alemão Friedrich Ratzel (1844-1904), expressando a noção de que “toda a sociedade, em um determinado grau de desenvolvimento, deve conquistar territórios onde as pessoas são menos desenvolvidas. Um Estado deve ser do tamanho da sua capacidade de organização”.
Embora a tese do Lebensraum tenha sido mais tarde incorporada como parte do ideário de Adolf Hitler e do partido nazista, Friedrich Ratzel era um notório admirador da Doutrina do Destino Manifesto dos EUA, país que visitou em 1873. Esta doutrina justificava a expansão territorial estadunidense baseada na ideia de que o povo americano era escolhido por Deus para “civilizar” o continente.
O Lebensraum (ou Destino Manifesto) do século XXI de Donald Trump é quase que inteiramente pragmático e pouco se preocupa com pretextos “civilizatórios”. Trata-se de defender os interesses dos EUA, ponto.
Talvez Trump tenha começado sua prédica expansionista justamente contra países de órbita direta de influência estadunidense visando passos futuros: através da intimidação, neutralizar reações e normalizar o que se prepara para as nações que têm (ou tentam ter) maior grau de autonomia diante do império.
Seja qual for a hipótese correta, o que está vindo por aí não é brincadeira. De nossa parte, construir uma integração latino-americana de caráter anti-imperialista e apoiar com todas as energias as iniciativas que fortaleçam a multipolaridade no mundo passam a assumir cada vez mais um caráter decisivo que, para o Brasil, particularmente, é vital.
Afinal, não será surpresa se Trump, em algum momento, fizer uma menção agressiva contra a soberania brasileira, referindo-se, por exemplo, a ocupar, comprar ou internacionalizar a Amazônia o que, malgrado os agentes caseiros do imperialismo (incluindo os falsos patriotas) demandará enérgica resposta.
É certo que muito do programa trumpista tem relação direta com o evidente declínio estadunidense. A tentativa desesperada de encontrar rumos para “recuperar a grandeza perdida”, pode, por outro lado, acelerar ainda mais este processo de decadência ao agudizar as contradições internas (no próprio território americano) e, principalmente, externas, pois estas últimas têm o potencial de levar para o proscênio do mundo, de forma renovada, as bandeiras da soberania nacional e da paz mundial.
O Lebensraum adotado pelos nazistas foi esmagado pela luta dos povos, não sem cobrar antes um altíssimo preço em vidas e sofrimento. O Lebensraum de Trump igualmente será derrotado. Esperemos que a um custo bem menor, embora as lutas e conflitos que ele desencadeará sejam, em certa medida, inevitáveis.
*Wevergton Brito Lima é jornalista especializado em geopolítica
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