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Quebra de acordo

Por Railane Borges


A primeira vez que ouvi falar de acordo tácito foi na faculdade. Isso significava que, nos méritos em que aparecia, haveria um entendimento implícito entre as partes para que fosse possível caminhar em conformidade com o exposto.

Pixabay
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No cinema, por exemplo, isso significava que, quando você estivesse naquela sala escura onde entrou por livre e espontânea vontade para ser exposto a uma narrativa construída com som e imagem, por mais surreal que pudesse ser a conjuntura apresentada por essa história, você toparia a sinopse.


Ali era a terra da ficção.


O acordo tácito era a única maneira de trazer o abstrato para ocupar uma parte da construção humana. Foi assim que você se apaixonou por um E.T. e teve medo de uma cobra gigante que nunca existiu naquelas dimensões. Foi neste mesmo tipo de acordo que de repente todos os bonecos passaram a ser ameaçadores durante a madrugada.


Algumas coisas quebram o acordo tácito que você tem com o espectador e, no meu meio, você deve evitá-las, a não ser que esteja tentando subverter alguma corrente ou trabalhe em um projeto experimental.


No geral, isso acontece quando você é leviano com seu público. Quando o trata como se não fosse inteligente o bastante e o deixa perceber isso. Quando a sua edição é ruim, quando os efeitos visuais estão em desconformidade, seja com o público-alvo ou com o orçamento do filme. Sempre que trabalhei em qualquer produção, avaliei o trabalho sob esse prisma.


Depois, percebi que muitos desses acordos estavam espalhados na sociedade em várias outras esferas. Os pilares da segurança pública para a manutenção da paz, por exemplo, são garantidos através do pressuposto da justiça.


Hoje, porém, está em andamento um dos grandes colapsos que assolam as sociedades democráticas. O colapso do Sistema Penal. Desde que o Estado tomou para si a responsabilidade de resolver as intercorrências e garantir a ordem, nunca esteve tão claro que a operação não tem sido suficiente para estabelecer os interesses coletivos em detrimento do egoísmo individual.


A justiça, em um escancaramento de ações com enorme seletividade, tem demonstrado que existe para garantir direitos advindos de privilégios de classe. Tanto na primeira fase, do inquérito policial, quanto na segunda, processual.


Apesar de vivermos a era do encarceramento em massa e dos processos em profusão, diferente do esperado, enquanto todos clamam por mais prisões e menos impunidade, não estamos caminhando para uma sociedade mais segura ou sequer menos violenta.


Demonstrar poder não é o mesmo que fazer justiça.


Abrir inquérito não é garantia de justiça.


Prisão é medida de exceção usada quando o sistema falha em prevenir o crime, em desmontar o ilícito, em atacar a operação criminosa. A exclusão sumária da sociedade não ressocializa, o ócio não ressocializa, a humilhação tampouco. Essa medida, última e ineficiente, é muito mais sobre o ESTADO poder te privar do seu direito à liberdade e o seu direito à vida, do que sobre atravessar um sistema onde você pague sua pena e acerte suas contas. Não existe acerto de contas. Ou: acerto de contas para quem?


De posse de sua pujança econômica, a conhecida esposa de um prefeito persegue juridicamente qualquer um que peça justiça por sua responsabilidade na morte de um menininho de cinco anos, filho de sua empregada doméstica. Não quer que ninguém a cite. Ao passo que cursa em paz a sua faculdade de Medicina, bem distante da cadeia, ela assiste ao desenrolar do processo cujo juiz acaba de diminuir o valor da indenização a ser paga para a mãe da criança, fixada anteriormente pelo crime de negligência e abandono de incapaz.


No Piauí, uma senhora acusada e condenada injustamente pelo tribunal das ruas por supostamente envenenar duas crianças, teve sua casa queimada e a vida arruinada, tendo passado cinco meses presa sem que merecesse uma investigação séria capaz de elucidar a barbaridade por trás do crime ocorrido. Solta, diz que vai recomeçar a vida na casa de familiares. Do zero.


Um menino de 14 anos jogava videogame na casa de sua tia, no Salgueiro, quando três policiais entraram na residência e lhe deram tiros de fuzil pelas costas. Sem nenhum confronto comprovado pelas perícias, a Justiça Militar os absolveu sumariamente, alegando legítima defesa.


Uma delegada conduz uma investigação desastrosa que leva a prisão de um homem inocente por ‘convicção’. O homem, em meio ao desespero, decide tirar a própria vida. Em seguida, é inocentado no processo, mas jamais saberá do desfecho. Na contramão de qualquer atitude cabível na tentativa de restaurar este erro inaceitável, a delegada é então promovida.


Um homem famoso por delitos na Zona Sul do Rio é levado mais de oito vezes pela polícia no decorrer de dois meses. Na nona, mata um jovem a facadas nas areias da Praia de Copacabana. A polícia prendeu. A justiça soltou. Não por serem defensores de bandido, mas pelo inquérito carecer de provas e investigação CONSISTENTE, que pudesse sustentar uma devida condenação no tribunal.


Uma viatura carrega dois suspeitos de homicídio. A vítima é um menino de dois aninhos. O crime bárbaro arrastou 10% dos moradores da cidade até a porta da delegacia. Lá, certos da falta de celeridade do sistema e descrentes na justiça, eles tiraram o preso da custódia do Estado e praticaram sua própria vingança.


Eu não sou especialista em segurança pública. Eu entendo de cinema. Mas eu sei que quando o sistema penal sofre essa falência hiper exposta, a população tende a esquecer que existe um conjunto de leis regendo o país. E sei que não é possível seguir com esse acordo tácito escolhendo manter a austeridade nestes momentos de crise.


E é exatamente isso que tem sido feito.


Também não adianta jogar a conta das loucuras da classe política na esquerda, na direita ou no centro. Todos se recusam a proceder com as mudanças necessárias. Enquanto a bola rola, o jogo não termina.


Esse desequilíbrio tem posto em xeque a capacidade de gestão do Estado em garantir direitos, afetando nosso comportamento em massa muito rapidamente.


A organização midiática e o levante das forças populares fazem frente ao Estado corporativo, mercantilista, e grandes momentos de tensão e embates tem início.


O medo, mal conselheiro das massas, recrudesce o radicalismo e o conservadorismo, dividindo a sociedade, separando-a como um terremoto de grande magnitude. Como resultado dessa divisão, a criminalidade aumenta, a crise aumenta, os episódios de intolerância aumentam, a desigualdade social aumenta, e no caminho oposto ao que desejamos, vemos aumentar o fenômeno da violência urbana.


A ineficiência do sistema joga irmão contra irmão, vizinho contra vizinho.


Fecha nossos comércios, afeta a agenda escolar dos nossos filhos, mexe na nossa aposentadoria e no investimento falível na guerra.


A verdade é que esse acordo tácito, que funcionou por muitos anos em termos de “rouba, mas faz”, já acabou há tempos. E isso não espanta.


A geração de 60/70, que, na vida adulta, pegou o boom do funcionalismo público, da noção de aposentadoria com saúde, dois empregos, “você pode, você faz”, estava cansada demais para participar, afinal, estavam alavancando a nossa economia.


Depois a geração de 80/90 enfrentou essa barra de chegar em um mundo globalizado, com novos desafios, com milhares de ferramentas disponíveis a todos e uma pasteurização da noção profissional, aliados a uma noção de individualismo que, em nível psicológico, foi capaz de nos atar à espetacularização dos personagens, tornando a fama uma característica primordial e imprescindível ao sucesso pessoal do indivíduo.


Agora temos os nascidos nos anos 2000/2010, já adultos, enfrentando a crise climática, as escalas extenuantes de trabalho, a crise do eu e a crise econômica, além da crise política.


A crise representativa só aumenta, não diminui, nem irá. A prática social em relação ao poder público vai precisar mudar. Mas continuar atacando sintomas, gritando por mais remédios, não vai nos prevenir de estar doentes. A reforma necessária é profunda se quisermos reestabelecer o acordo. E precisamos entender o panorama para conseguir exigir as mudanças necessárias para caminhar na direção de alguma paz possível. Não me parece que exista um plano. Se houver não está sólido, nem pedagógico. Continuamos expondo absurdos sem apresentar soluções. Pegos em sua matéria gelatinosa e ela em muito se parece com o que restou da nossa democracia.


Uma massa disforme, quase derretida, exposta às intempéries e as ações (des)humanas.


*Railane Borges é atriz e cineasta

3 Comments


Matéria cirúrgica! Assombrada pela desesperança que nos encurrala no canto esquerdo da história! (JP)

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Impressionante como a irresponsabilidade em relação as consequências desses abusos persiste ao passar dos anos. Cenário assustador

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Que texto brilhante! Necessário! Ele nos apresenta uma análise profunda e incisiva sobre a crise do sistema penal e a falência do acordo tácito entre o Estado e a sociedade.


Sua abordagem é ao mesmo tempo poética (como sempre! Rs!) e incisiva, nos convidando a refletir sobre a necessidade de mudanças profundas em nossa sociedade.


A visão que Railane compartilha nos inspira a pensar de forma crítica e criativa sobre os desafios que enfrentamos.


Parabéns pelo texto!


Edimar.

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