Sonhos de uma menina que escrevia
Railane Borges
Diferente de todas as outras pessoas que conhecia, quando ouvia alguém dizer que era inteligente, não sentia alegria. Não acertava a postura dos ombros para deixá-los mais eretos como tinha visto alguns de seus colegas fazerem quando se sentiam orgulhosos de si. O que sentia efetivamente eram espinhos no nariz. Um sentimento difícil de descrever em palavras. Não era falta de auto estima ou de amor próprio. Passava mais pela ausência de reconhecimento de todo o esforço que teve que fazer para chegar onde estava. Pensava meio borocoxô nas tantas noites em claro que passava selecionando e estudando seus próprios conteúdos para construir um arcabouço particular de referências.
Uma constelação de assuntos pendurados na parede da memória.
Já na escola, nos primeiros anos, entendeu que não era genial e nem dona de alguma capacidade específica que fosse capaz de tirá-la do mar alto de maisoumenices em que estava metida.
Na falta de talento nato para qualquer coisa, sobrava apenas a dedicação, o nadar para dentro e torcer para não se afogar. Passou então a considerar a inteligência um baú que apenas ela mesma poderia abrir. Podia ser que isso a desse uma chave só sua. (Não como a de sua mãe que abria portas e salas da escola em que trabalhava, mas uma que abrisse as suas portas de dentro). Uma chave de qualquer tamanho ou forma, que mostrasse o caminho entre as coisas que nunca tinham se encaixado, através de um chão construído sem respostas para as suas perguntas.
Este baú que sequer existia em um mundo concreto, primeiro não tinha absolutamente nada em seu interior. Tal fato não a impediu de se esmerar em fitar o inane, coisa que fazia todos os dias deitada no chão do bambuzal, ao lado de tudo que pensava que tinha sem ter, orgulhosa de apenas saber-se cidadã desabitada. As coisas se completavam em tamanho e sentido, pois enquanto as pessoas não soubessem o que estavam procurando, podiam continuar encontrando qualquer coisa.
Acreditava no vazio como o melhor terreno para os atravessamentos.
Essa fé nasceu ao ver como a luz que cortava os céus vinda de muito depois das nuvens, concentrava seu facho em uma espiral cintilante a desenhar a ‘enorme diagonal dourada’, desnudando uma rara cena que levava seus olhos a ver. Em um ponto específico do chão, debaixo das folhas recém caídas, havia uma comunidade inteira de seres pequeninos transitando entre suas necessidades vitais, por entre os grãos da terra, inertes aos pisoes e às intempéries do tempo.
Depois de tanto olhar e perscrutar os veios da madeira que quase se desgastam de tão vistos, foi que encontrou a primeira coisa que guardar: a certeza de que de cima também era como aquela formiga.
Neta de nenhum vô presente, elegeu Manoel De Barros primeiro membro de sua família e tudo ficou mais fácil. Passou a escrever-lhe cartas que nunca mandaria. Depois as dobrava em barcos e as deixava navegar nas águas das chuvas fortes. Conversava sobre a maestria do canto das cigarras e o carisma na curiosidade do pássaro. Foi misturando mundos com a força poética de seu olhar que percebeu em seu pai, um homem bruto que gostava de plantar, um verdadeiro alquimista de abraços verdes.
Ele não era capaz de entender bem dentro de si o tamanho das coisas vivas antes que as árvores crescessem e por isso as plantava muito próximas umas às outras, criando laços entre galhos que mais pareciam nós. Diferentes folhas se entrelaçavam e aquela malha feita acidentalmente pelo pai cobria os medos à noite, como se fechando os olhos pudesse finalmente fazer parte, pertencer com sentido a sua fantasia familiar de menina que detestava ser só.
Obcecada pelos desenhos de mundo, escondida no beiral do telhado de sua casa, habitando as bordas e explorando o intocado de um terreno semi-fértil, sorveu grandes goles de significâncias e de sua boca fez chover palavras. Aprendeu a se ser, depois renasceu poeta. Do dito ou escrito.
Cresceu no mundo e por ele foi odiada.
No baú, ainda remanescente, uma carta:
“Hoje as lesmas não apareceram nos restos de cerveja pelos cantos do quintal. Acho que nem mesmo elas aguentam mais. Você acha, vô? Que ele não vê por estar sempre equilibrando os passos para não cair? Os ovos de percevejo estão mais reluzentes e já se vê o centro escuro, acho que estão prestes a eclodir e novos bebês chegarão. Espero que as folhas de maracujá deem conta de sua fome. O sino da igreja acabou de soar 9 badaladas! Todo o meu corpo estremeceu e meus pés me pedem que vá até lá. Se correr morro acima, chego a tempo de poder ler a primeira palavra no único palco em que já posso subir”
Enquanto busca as palavras para um de seus novos trabalhos, pensa nos palcos, na ciranda, na menina que foi dentro da mulher que busca dia após dia ainda ser. Nas dificuldades de nascer aqui e escrever aqui. Neste lugar e para estas pessoas que não se importam em ser e não gostam de ler.
Railane Borges é atriz e cineasta.
Esse texto, lindamente poético, faz a gente lembrar de como são difíceis e atemporais os atravessamento em busca de ser.
Nossa! Difícil lidar com o que passamos na infância e se equilibrar adulta em meio a tantos desafios. Mas seguimos!