'Taputá Tometô'
Por Railane Borges
Meio que na contramão dos tempos modernos, por aqui ainda viajamos (e muito) de carro. Andamos pelo Brasil todo, tornando-nos meio que íntimos de muitas e muitas estradas do país. Nesse Carnaval não foi diferente e partimos para o Sul da Bahia, um dos destinos que mais fazem parte da nossa vida.

Costumamos dizer que, para os meninos, crescer dentro de um conceito de vida como esse, passando por lugares perdidos no mapa, conhecendo pessoas dos mais diversos tipos e origens, sua história e demandas, não tem preço. E realmente temos dois pequenos que já dominam bastante, para as idades que possuem, a ideia das disparidades que este país continente tem.
E quando falamos de disparidades e, consequentemente, incoerências, percebemos que ao longo desses seis ou sete anos de estrada, assistimos entristecidos as grandes mudanças impostas pela especulação imobiliária em lugares que deveriam ser tratados como santuários.
Em que pese o argumento de melhoria da qualidade de vida das populações dessas cidades e distritos com a chegada do capital, o que ocorre na verdade é uma intensa deteriorização de culturas, recursos naturais e talentos locais.
O detentor de recursos financeiros não se contenta em se apaixonar pelo lugar e voltar sempre. Ele quer para si uma parcela daquela terra para explorar. Via de regra, para construir empreendimentos totalmente diversos do que é o hábito da região.
Andando pelo Sul da Bahia, neste ano contamos pelo menos 16 condomínios sendo construídos ao longo das estradas no litoral. “Seu pedacinho de terra no paraíso”. Lotes e mais lotes, muitos em áreas de proteção ambiental, e mesmo em reservas indígenas, onde é proibida a venda e negociação de áreas, sempre com influência direta de políticos municipais e às vezes de outras esferas, que, em tese, deveriam ser árduos defensores da manutenção da ordem naquelas localidades.
Muito pelo contrário. Avalizam a ação de predadores imobiliários, que tentam avançar de forma desmedida e muitas vezes violenta na direção de terras demarcadas.
Visitando aldeias na Costa do Descobrimento, o que sentimos é uma grande indignação, algum receio de retaliações violentas, mas, principalmente, um desejo enorme de resistir.
A emoção foi grande ao conhecer as guerreiras, mulheres indígenas, que organizadas e com pinturas de guerra em seus rostos, defendem com força e coragem seu território ancestral, contra uma massa de homens gananciosos que vez ou outra performam tentativas escancaradas de expandir seus domínios e negócios para dentro da reserva Pataxó, extraindo do areal, grilando a terra e colocando em risco as nascentes dos rios.
Bonito de saber e de ver. Mas triste perceber que esses ‘empreendedores’ não teriam o menor sucesso em suas jornadas, se não fosse a alta demanda trazida pelo turismo de massa, em que não se exige do turista um mínimo de consciência social, ambiental, para a horda de ricos brasileiros, de todas as regiões, que por pura vaidade cede ao desejo de edificar suas casas de gosto duvidoso nessas regiões, pois na pior das hipóteses podem explorar o aluguel por temporada.
Essa mesma vaidade do bonitão que frequenta cidades nordestinas apenas porque elas estão na “moda”, leva morte e destruição para as vidas de muitos.
Para que?
Para que o detentor de dinheiro possa ostentar com sua boca gigante o fato de ter uma casa em lugar A ou B, numa demonstração estupida de status, que a sociedade já deveria ter entendido há algum tempo como tosco e sem sentido.
Ao ter que deixar este paraíso depois de dias ao som da natureza selvagem, desejo que o etnoturismo de base comunitária resista, que as pessoas se conscientizem sobre as árduas batalhas enfrentadas pelos povos originários neste país.
Por aqui seguimos. Escrevo da estrada, que tanto percorremos em busca desses cantos reservados do mapa e não raro esquecemos até mesmo de fotografar. Não. Não estamos aqui por ser uma região instagramável. Não levaremos mais que lembranças, alguns artesanatos locais e amigos dos quais sentiremos saudade. Aliás, viajar da forma que escolhemos tem pouco ou quase nada do glamour que tantos esperam na atualidade.
A cada quilômetro percorrido, aprendemos. Sobre as pessoas que vemos, as cidades pelas quais passamos, sobre o país e, principalmente, sobre nós mesmos.
TAPUTÁ TOMETÔ, em língua Pataxó, significa “sejam bem vindos” mas eu aproveito para complementar: “os que vem em paz e com boas intenções”.
*Railane Borges é atriz e cineasta
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