Valor trabalho: uma âncora para a moeda única BRICS
J. Carlos de Assis*
Tenho recorrido à opinião de alguns especialistas em moeda e mercado de tra-balho para discutir a viabilidade de uma moeda comercial única para o BRICS. Minha proposta é que uma moeda comercial não especulativa para o bloco e, eventualmente, com trânsito fora dele - caso venha a ser expandida para o resto do mundo -, deve ser ancorada em bases concretas e não especulativas. Para isso, teria de basear-se no con-ceito fundamental de valor de troca de Marx, aplicado ao valor da força de trabalho.
Em termos da teoria marxista, o valor de uma mercadoria num país integrante do BRICS deve ser proporcional ao valor de sua reprodução. Já o valor de sua reprodução deve ser proporcional ao valor da força de trabalho nele empregada, o qual, por sua vez, deve ser proporcional ao de sua própria reprodução (salário básico).
A moeda em cada país-BRICS deve refletir, pois, o valor objetivo das mercadorias nacionais, sendo a moeda comercial única uma média do valor das moedas nacionais, e variaria com elas. Com isso, seria estreitado o espaço para a especulação e as arbitragens com o valor da moeda comercial única. O determinante essencial do valor dessa última seriam os salários reais básicos relativos, não as expectativas do mercado, como acontece hoje.
A relação entre os valores das moedas nacionais no interior do bloco BRICS de-terminaria as forças competitivas de cada economia, que dependeriam, por sua vez, do valor de reprodução da força de trabalho local. Na medida em que haja uma pressão para aumento de salários básicos muito forte, a economia perderia força competitiva, como, aliás, já acontece hoje. A diferença, essencialmente, é que no sistema de valor-trabalho quem comanda o processo são os trabalhadores, não o mercado especulativo de moedas.
Em termos operacionais, é necessário estabelecer uma taxa de câmbio entre a moeda nacional e a moeda comercial única. Basta que se faça isso apenas uma vez, no ponto de partida das relações entre as duas moedas, pois depois a evolução de ambas ocorreria independentemente uma da outra, de acordo com os salários reais básicos. A moeda nacional ficaria sujeita a pressões do mercado real local e também de pressões especulativas (expectativas), dependendo, no primeiro caso, das oscilações de oferta e procura de bens e serviços. Já a moeda única seguiria ancorada na média do valor nacional básico da força de trabalho, dando maior estabilidade ao conjunto do sistema.
Esse esquema, a partir do BRICS, funcionaria melhor do que a sugestão que vem sendo feita por alguns economistas, e assumida pelo presidente Lula, de uma mo-eda comercial comum para a América do Sul ou América Latina. Creio que, operacio-nalmente, essa proposta é mais viável. Isso porque, com um menor número de países e moedas envolvidos, seria mais fácil determinar o valor inicial da moeda e acompanhar sua evolução. Depois os demais países poderiam aderir a ela sem maiores embaraços, individualmente.
A emissão monetária pelo Banco BRICS aplicaria o modelo soberano de qualquer Banco Central nacional, quando caracterizado por uma política fiscal-monetária progressista. Nesse sentido, seguiria o padrão da Teoria Monetária Moderna, ou Teoria de Finanças Funcionais, pelo qual só estaria limitado quantitativamente pelos projetos de financiamento comercial e empresarial financiados pelo próprio banco, segundo critérios rigorosos de sustentabilidade e responsabilidade financeira. Dessa, não haveria risco de estreitamento de liquidez para o bloco BRICS como um todo, nem de inflação em moeda BRICS.
Na discussão interna que já está havendo sobre a moeda única, há quem defenda a volta ao padrão-ouro. Entretanto, do meu ponto de vista, nessa altura do século seria uma regressão. O ouro, como dizia Keynes, é uma relíquia "bárbara" do capitalismo. Restringiria a expansão monetária global em prejuízo sobretudo dos países pobres e em desenvolvimento, que não o possuem. A proposta aqui defendida aponta, efetivamente, para uma moeda baseada na produção (ou na aplicação da força de trabalho) comum dos países BRICS, com as mesmas características de uma moeda soberana – entendida esta como expressão da soberania comum dos BRICS.
Com isso, conforme argumentei acima, teríamos um padrão monetário que se ajusta perfeitamente à Teoria de Finanças Funcionais, de Abba Lerner, como indicado acima, possibilitando uma ampla expansão monetária em escala BRICS (e oportunamente mais ampla, na medida em que outros países adiram ao sistema) a fim de financiar o desenvolvimento, especialmente dos países mais pobres e mais dependentes de crédito. Esta, em resumo, seria sua principal vantagem.
Seria muito curioso, assim, que, nessa altura do século, e depois da pressão esmagadora das moedas especulativas operadas pelo sistema bancário ocidental sobre todo o mundo, durante décadas, chegássemos, no espaço do BRICS e em tempo de perda da hegemonia financeira do dólar, à operação de uma moeda comercial única alternativa a elas. Marx, certamente, reagiria a esses eventos às gargalhadas!
*J. Carlos de Assis, economista e doutor em Engenharia de Produção, é autor de cerca de 30 livros sobre Economia Política brasileira e internacional.
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